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Local: Varanda em Pernambuco

quarta-feira, novembro 21, 2007

Roda da Fortuna


Quando me mudei para este apartamento em Piedade, de vez em quando, ouvia a voz de um cantor que me parecia o Zezé de Camargo. Ficava intrigado.

Pela varanda procurava identificar de onde vinha aquele cantar afinado, agudo com tremidos. Nada.

Até que um dia vejo um rapaz encostado num coqueiro de um terreno aqui defronte, concentradíssimo, cantando alto e com gestos largos dirigidos a uma platéia imaginária.

Conheci-o como Beto, ajudante do Ceará, barraqueiro da praia aqui em frente. Perguntei seu nome e me disse que era Gerson da Silva mas que o chamavam de Beto. Quando se apresentava em pequenos shows seu nome era Gerson de Camargo.

Uma figura o Delegado. Sim, Delegado é outro de seus apelidos porque costuma chamar os clientes da barraca de delegado, major ou qualquer outra patente. Mesmo quando servindo na barraca, nos intervalos, canta. Canta bem e sua voz lembra, mesmo, a do Zezé de Camargo.

Infelizmente a figura é maltratada pela pobreza. Barba sempre por fazer, vestido com o que Deus provê, dentes mal cuidados. Mas sempre alegre.

Vive sonhando em um dia ser cantor de verdade. Só pensa nisso. Um dia comentei com ele essa mania de ser sonhador. Respondeu-me com franqueza que sonhar é parte da vida e ele adora se imaginar um novo Zezé!

Sábado eu tomava uma cervejinha na barraca do Ceará quando o Gerson se achegou. Papo vai, papo vem, perguntou-me na lata: “o senhor não quer me dar um violão?”

Confesso que a idéia nunca me ocorreu e perguntei se ele sabia tocar violão. Disse que ia aprender com um pastor que lhe daria aulas sem cobrar.

“E quanto custa o violão que você quer”, perguntei.

“Delegado, por oitenta “conto” eu arrumo um usado”, respondeu.

“Te dou de presente de Natal”, disse eu.

Quis saber se o Natal era este mês ou faltava muito tempo ainda. Disse-lhe que arranjasse o violão e me procurasse.

Dia seguinte, domingo, não costumo ir a praia. Estava lendo meu jornal quando me interfonam da portaria dizendo que o Ceará estava lá em baixo e queria falar comigo. Estranhei, mas desci e, para minha surpresa, não era o Ceará, era o de Camargo.

Chegou-se tímido e disse que um amigo tinha trazido um violão para eu ver. O violão era um Kashima, até que bastante decente, com capa e correia de apoio .

Confirmei o preço de oitenta “conto”, paguei e dei o violão para o Beto. Ficou sem palavra, só conseguia rir.

Violão nas costas lá se foi ele feliz da vida guardá-lo na casinha que mora aqui em frente, antigo alojamento dos peões da construção do prédio onde moro.

No meio da tarde, neste mesmo domingo, chama minha atenção uma sirene, na rua aqui em frente. Olho da varanda e não entendo a confusão.

Um caminhão dos bombeiros, duas motos da PM e um jet ski do corpo de bombeiros na beira do mar. Uma pequena multidão se aglomerava. Imaginei que alguém tivesse sido salvo de afogamento. O carro já partia. Voltei para minhas leituras.

Dia seguinte, segunda feira, soube que um rapaz tinha espancado o pai e fugido da polícia correndo para dentro do mar. Nadou, nadou e ninguém mais conseguia encontrá-lo.

Chamaram os bombeiros com o jet ski que depois de muito procurar o encontraram boiando, cansado, a quase mil metros da praia. Rindo, completamente chapado, drogado.

Soube que era o Bruno, um rapaz que quase todas as manhãs levava sua cadelinha, uma bull- terrier, para brincarem na praia. Chamavam a atenção pela brincadeira de pega que a cadelinha brincava como uma garotinha alegre!

Solto, ainda no domingo, voltou para o apartamento do pai e na segunda feira, logo cedo, pulou do décimo andar.

O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval pode ser explicado através da iluminura do Hortus Deliciarum, com seus quatro estágios simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda.

Regnabo,“eu devo reinar”, figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço direito erguido.

Regno “eu reino”, figura em cima da roda, freqüentemente coroada, para significar o reinado.

Regnavi “eu reinei”, figura que está do lado direito da roda, caindo da graça e sum sine regno “eu não tenho reino”, figura na base da roda que perdeu completamente os favores da Fortuna.

Esta pessoa é, às vezes, completamente jogada da roda ou esmagada por ela, sem nenhuma chance de reinar de novo.

Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Fantástico texto!!!!

9:03 PM  
Anonymous Anônimo said...

Corajoso esse Gerson.
A Liberdade para sonhar, devanear, fantasiar, fez com que ele voasse pelo reino do desejo, nas asas da imagina�o.
E aproveitando-se desse combust�vel, dessa liberdade, ele sonha em ser um ZEZE da vida. Vai continuar a construir pontes entre o desejo e a realidade.
O primeiro passo foi dado, e olhe que deu sorte, Hein?
Que ele continue a sonhar.

9:18 PM  

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